Por: Carlos Carvalho
Morreu no dia 18 pp, no Hospital Santa Rita Vieira, Bernardo Pereira Semedo (BPS).
Morreu num completo anonimato, o que, aliás, é mais que normal.
Bernardo é desconhecido da grande maioria dos cabo-verdianos. Só é conhecido por alguns colegas professores de Sta. Catarina, seus ex-alunos, e por alguns poucos guineenses dum bairro de Bissau, chamado de Txada de Burro, que vivem nestas ilhas.
Bernardo Pereira Semedo nasceu e passou a infância em Dacar, para onde os pais emigraram nos anos 30. Fez a escola primária em Dacar. De Senegal os pais seguem para a Guiné, onde vivem até os anos oitenta. Continua os estudos (secundário e liceal), em Bissau. O liceal no Liceu Honório Pereira Barreto, tendo sido, segundo muitos colegas, um dos melhores estudantes desse Liceu na altura.
Desde o regresso da família a terra-natal, cremos após o Golpe do Nino, Bernardo viveu até a morte em Pingo Txuba, interior profundo do Concelho de Santa Catarina.
Exerceu as funções de professor primário numa escolazinha desse Concelho até se aposentar há uns anos.
Bernardo podia ter sido um grande matemático, um excelente engenheiro ou técnico superior de grande qualidade, ou em qualquer outra área de especialização. Chegou a ganhar um concurso no BCV, antes de se transformar em BCA. Mas, vicissitudes da vida e uma certa falta de sorte fizeram com que tivesse chegado a Cabo Verde depois do prazo que devia apresentar-se como candidato ganhador.
Bernardo era filho de Joao Pereira Semedo (JPS), cabo-verdiano, também de Pingo Txuba.
No livro “Memorias da Luta Clandestina”, do Combatente de Liberdade da Pátria, Inacio Soares de Carvalho, este conta detalhadamente o envolvimento de JPS na luta clandestina de libertação nacional.
Para se conhecer um pouco a história da família Pereira Semedo, transcrevo aqui alguns extractos da obra.
No depoimento que nos prestou aquando da feitura do livro, Bernardo, já debilitado, diz:
« Nhu Inácio é que escreveu o livro? Não sabia! Fez bem! Nhu Inácio passa mal na mon di PIDE!!
[…] Era lá em casa que faziam as reuniões. Fizeram muitas reuniões. Claro que eu assistia a tudo. Iam lá todos os homens grandes do Partido. Nhu Rafael (Rafael Barbosa), bu papé (teu pai, Inacio Soares de Carvalho), Morato Melaco (Chefe de Tabanca de Txada di Burru), omis grandi li di Txada (os mais velhos do Bairro de Achada).
[…] Eu sabia de tudo porque assistíamos as reuniões, levávamos e trazíamos recados. Ouvíamos a Rádio Libertação e outras Rádios Internacionais. Sim! Eu falava bem o francês. Nasci em Dacar!
[…] Sim! Papai (Nhu Nézinho) é que guardava os documentos e o dinheiro (as cotas) em casa. Ele mesmo metia seu dinheiro quando era preciso.
[…] Os documentos nas paredes da casa e na horta? Já não me lembro. Sabe… cabeça!
[…] Toda aquela rapaziada assistia às reuniões! O Paulo (Pereira de Jesus), o Namorado (Mendes Teixeira), o Zé Carlos (Schwartz), o “Duarte mancanhe” (Duarte da etnia mancanha), e outros (Bernardo diz que já não se lembra de mais nomes…sabem cabeça já não ajuda, diz ele).
[…] Claro que me lembro de quando foram prender o papai. Foi … quem os denunciou na PIDE. Aquela mulher!!! I ka bali (Não valia nada)!! Ela era terrível! Colaborava com a PIDE. Andava sempre a rondar a casa e ia denunciar ».
Bernardo e a PIDE
[…] Quem, eu?? Escapei por um triz. Não fosse o 25 de Abril também ia preso! Uma vez, o agente me disse que eu já estava na lista. Não ia escapar. Foi o 25 de Abril que me salvou.
[…] Às vezes, fazíamos de guarda para controlar os PIDE(s).
Às vezes, porque quando Bernardo e o irmão, também já falecido, não faziam guarda para participar nas reuniões encarregavam os ainda “rapasinhus”: os irmãos António Pedro Pina (Pina de Electra) e Jorge Pina (empresário residente na ilha do Sal), e Felino de Carvalho (Embaixador de Cabo Verde no Senegal) de montar a guarda.
Estes “rapasinhus” nasceram e cresceram na casa di Nhu Nézinhu, no Bairro de Txada. Como se dizia, Nhu Nézinhu “k krias ti kes da Omi”.
[…] Já não me lembro onde escondíamos os documentos. Mas era lá em casa. Claro que lia todos os documentos, panfletos e outros que vinham da luta. Estava a par de tudo. Antes de guardar, lia tudo só depois guardava. (A mulher intervém outra vez para lembrar que a cabeça de Nana “dja ka sta mutu dretu…ta skesi txxeeeeeuuu”! (a cabeça já não está grande coisa…esquece muuuuito!).
Os “rapasinhus”, todos homens hoje com responsabilidades na sociedade cabo-verdiana, ainda se lembram bem onde se escondia os documentos em casa e na horta de Nhu Nézinhu, pois, eram eles que ajudavam Nana a abrir buracos nas paredes da casa e a cavar a horta para esconder os documentos.
Djorsi (como Nhu Nézinhu chamava Jorge) ao ler este artigo deu-nos uma informação adicional de que: “A PIDE encontrou os documentos debaixo da cama enterrado numa lata de leite Nido e no verso de um quadro, penso da A Última Ceia de Jesus », para além dos encontrados na horta.
[…] Não podia ir para a luta porque eu é que responsabilizava pelos negócios da família. E, sabes, os pais já estavam de idade.
Joao Pereira Semedo, aliás, Nhu Nézinhu, como todos os que emigraram nessa altura, saiu para fugir da vida difícil que se vivia nas ilhas.
Na emigração, foi pedreiro, pintor, agricultor e … político.
JPS teve dois filhos: O Bernardo e o Domingos. O Domingos era deficiente, também muito inteligente. Devido a sua deficiência era poupado nos afazeres da família, mas sempre contribuía, por exemplo, regando na horta dos pais. Domingos foi professor de quase toda a “meninada” e rapaziada de Txada de Burro, sendo alguns, hoje, altos funcionários e responsáveis na administração publica guineense e no privado.
Do resultado de todas essas profissões, Nhu Nézinhu conseguiu ganhar dinheiro, com muito suor, que lhe permitiu tornar-se num respeitável proprietário de vários bens na Txada de Burru. Dentre seus bens constam: três enormes casas e uma grande horta donde retirava uma quantidade enorme de produtos agrícolas que vendia no principal mercado de Bissau. Esses bens ainda lá se encontram a espera de que, um dia, os descendentes e verdadeiros donos de tudo reassumam a posse do que tanto custou a esse cabo-verdiano de Pingo Txuba conseguir.
Permitem-me sugerir ao nosso ainda Presidente da República, dadas as boas relações que teceu com o Presidente da Guiné, que exerça sua Magistratura de Influência (MI) junto do General Sissoco, para ajudar a reaver as propriedades dos Pereira Semedo que correm o risco de cair em mãos alheias.
Ou ainda propor ao recém-eleito PR de Cabo Verde para, fazendo uso do mesmo figurino- MI, junto de nosso Governo, não deixar que esses cabo-verdianos, di fundu di nos ilha-mai, percam irremediavelmente o que com muito sacrifício conseguiram erguer.
[…] Combatente de Liberdade da Pátria?? Não, não sou. Não sabia! Tudu luta k no luta k PIDE!! (Todo o combate que demos aos da PIDE).
Efectivamente, Bernardo dada a sua há muito debilitada saúde quase se desinteressou de tudo, vivendo uma mais que pacata vida no interior da ilha.
Tentamos a possibilidade de lhe ser atribuído, ainda em vida, o estatuto de Combatente de Liberdade da Pátria, mas com a suspensão da atribuição desse estatuto (já tanto banalizado) este desiderato não foi conseguido.
Bernardo acaba por morrer de forma inglória, deixando viúva e filhos, alguns padecendo de complicadas doenças.
Sabendo de tantos combatentes hoje existentes cujos contributos para a luta nem chegam à metade da participação de Nana e de seu pai, fica esta justiça por fazer à família Pereira Semedo.
Ao Bernardo que seja atribuído, se possível e a título póstumo, o estatuto de CLP e ainda que seja atribuído o seu nome a escola onde leccionou ou a uma escolazinha qualquer do Concelho para perpetuar sua memória e a da família que muito contribuiu para a libertação desta terra.
Praia, Outubro de 2021.
Publicada na edição semanal do jornal A NAÇÃO, nº 739, de 28 de Outubro de 2021
Franklin Afonso Furtado
7 de Novembro, 2021 at 11:09
Justa homenagem!
Até sempre!