Cantam-se mornas em todo o Cabo Verde e na diáspora. Estas músicas lentas, de melodias envolventes e letras quase sempre apaixonadas, tocam o coração de todos os cabo-verdianos. E resistem aos ritmos mais trepidantes, que fazem sucesso nas pistas de dança, e aos modismos que cativam a juventude. A morna, ao falar de sentimentos que são universais, é ao mesmo tempo um ícone da identidade do povo cabo-verdiano, e muito já se falou e se escreveu sobre este ponto.
“Na verdade, sempre o facto nos intrigou: um povo batido pela adversidade e cantando ou exaltando a ternura”, observou o escritor português Manuel Ferreira no seu livro A Aventura Crioula. A origem da morna, assim como a própria palavra “morna”, permanece um debate sem fim, rico em especulações, já que os registos históricos não são muito abundantes e a transmissão oral foi o veículo que a fez chegar aos nossos dias. Influências as mais diversas já foram cogitadas, mas até hoje sem consenso.
A maioria dos autores dá como sendo a Ilha da Boa Vista o local de origem deste género musical, embora não haja informações concretas sobre o surgimento dos primeiros compositores desta ilha, povoada a partir de finais do século XVI. Do início do século XVIII a meados do século XIX, a Boa Vista viveu a sua fase áurea: foi sede do governo (1842) e também proposta para ser a capital da colónia – circunstâncias que poderiam ter favorecido o aparecimento de fenómenos culturais relevantes.
Na sua primeira fase, a morna tinha como características, segundo os seus estudiosos, um andamento mais rápido do que o actual e letras muitas vezes sarcásticas, longe da melancolia e sentimentalismo que depois veio a apresentar. É a partir do final do século XIX que, na ilha Brava, o poeta e compositor Eugénio Tavares (1861-1930), às cordas de uma guitarra portuguesa, lhe terá conferido um extremo lirismo, fixando os seus temas em torno do amor, da idealização da mulher e da saudade. Segundo Tavares, Brada Maria é, segundo relatos que ouviu na sua ilha, a mais antiga morna aí conhecida. A letra é o lamento lancinante de uma jovem que, furtando-se aos padrões morais vigentes, vive uma noite de amor da qual se arrepende ao alvorecer.
Considera-se que partir de meados dos anos 1920, com aquele que é considerado, ao lado de Eugênio Tavares, um dos maiores génios da composição em Cabo Verde, B.Léza (Francisco Xavier da Cruz, 1905-1958), a morna vai receber uma outra alteração importante. Neste caso, no que se refere aos aspectos harmónico e melódico. Influenciado pela maneira de tocar o violão dos marinheiros brasileiros que passavam por São Vicente, sua ilha natal, B.Léza introduz o meio-tom (acorde de transição) na morna, impregnando-a de uma certa dramaticidade que a partir de então passa a ser um dos seus elementos característicos.
Certamente que B.Léza e Eugénio Tavares não eram os únicos compositores de mornas do seu tempo mas, inegavelmente, ficaram como ícones dessa primeira metade do século XX. A partir da década de 1960, surgem novos nomes. Contudo, o mais saliente, dada a dimensão e qualidade da sua obra, é Manuel d´Novas (1938-2009). Nos tempos mais recentes, Betú é um dos mais destacados compositores, e a sua obra vem sendo gravada desde a altura da independência de Cabo Verde, inicialmente pelo grupo Os Tubarões – cujo vocalista era Ildo Lobo, uma das grandes vozes da morna, e que lhe dedicou um dos seus discos a solo, Nos morna (1997) – e mais tarde por muitos outros intérpretes.
Património da humanidade
Durante muito tempo, a morna foi tida como o género musical cabo-verdiano por excelência. Foi só depois da independência de Cabo Verde que outras formas musicais – como o funaná e o batuko – ganharam visibilidade. Mais tarde, com o aparecimento do hip-hop e do zouk, e a grande adesão da juventude a esses ritmos, a morna é vista por observadores como tendo perdido o seu peso no cenário musical cabo-verdiano. Paradoxalmente, é nessa mesma época que, pela voz de Cesária Évora, a morna ganha o mundo, conquistando fãs ao redor do planeta. E continua presente no repertório de artistas actuais, casos por exemplo de Lura e Nancy Vieira, que têm lugar, nos seus trabalhos mais recentes, para B.Léza e Tavares, entre outros compositores.
Em 2012, o governo de Cabo Verde decidiu candidatar a morna a património imaterial da humanidade, título que nos últimos anos a Unesco atribuiu ao fado português (em 2011) e ao tango argentino (2009). Uma comissão científica irá elaborar o dossier de candidatura a ser apresentado à Unesco e foi criada também uma comissão de honra integrada por personalidades da área cultural para actuar como “embaixadores” do projecto.
Morna: O coração de Cabo Verde em forma de música
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