Confesso que não esperava tão cedo uma carta tua. Sim, porque os meninos da tua idade se comprazem mais com vídeos-jogos e se deixam render pelas virtualidades da comunicação multimédia. Talvez não tenhas a noção da ingente tarefa que me pedes. Apelas à minha memória para reconstruir a fotografia do longínquo ano de 2015. Não sei de onde te vem esta mania pela história recente do nosso país! Recuar quinze anos, pode até parecer insignificante na escada do tempo, mas para quem deixou de ser um intérprete do instante, isto é o mesmo que fazer uma incursão pelo séc. XVIII. Bem, como não explicitas o que pretendes, nem as dimensões que o filme da minha memória cansada deve abarcar, vou-me socorrer de algumas anotações que, religiosamente, guardo desde o tempo em que eu era jornalista. Hoje, só de me lembrar desse período arrepio-me todo! Adiante, que não estás interessado numa sessão de nostalgia.
Lembro-me que no ano anterior, 2014, houve dois acontecimentos cujos efeitos se fizeram sentir de forma bastante severa no ano seguinte. Depois de dezanove anos adormecido, o vulcão do Fogo acordou e, pelos vistos, esfaimado, qual não foi a fúria com que devorou casas, pequenas unidades industriais de produção de vinho e doces; extensas áreas agrícolas e os sonhos de quase duas mil pessoas. O governo reagiu como pôde ou sabia, ou seja, alijou grande parte da responsabilidade pela reparação dos danos causados pela devastação para cima dos cidadãos. Um “esforço fiscal” que, parecendo insignificante, contribuiu para depauperar ainda mais as exauridas finanças das famílias cabo-verdianas.
Esse ano foi também marcado por uma seca sem precedentes, pelo menos na última década e meia. Uma desfeita que acontece ironicamente no ano em que o governo tinha inaugurado, com pompa e circunstância, não-sei-quantas barragens, diques e furos de captação de água. De todos os cantos choveram pedidos de socorro para acudir o gado como há muito não se ouvia. As câmaras municipais inundaram os ministérios com planos de emergência. Tirando a alegria que foi a qualificação, pela segunda vez consecutiva, dos “Tubarões Azuis” para a fase final da Copa de África das Nações, diria que em 2014 os deuses resolveram conjurar contra estas ilhas (des)afortunadas.
Estou tentado a dizer-te que 2015 foi quase um prolongamento de 2014. É como se ano tivesse sido pequeno para a quantidade de problemas, acontecimentos e contradições que o tempo não pôde ou não soube resolver. Na verdade, muitos dos assuntos e projectos que se iniciaram nesse annus horribilis, ou nele tiveram profundos desenvolvimentos, conheceram o seu desfecho em 2015.
O ano começou com um congresso do PAICV que, supostamente, serviria para aclamar a nova presidente do partido, na altura, a mais jovem ministra do governo chefiado por José Maria Neves, mas que acabou por ser uma verdadeira prova de fogo para o partido da estrela negra. Janira, a menina que teve o atrevimento de bater nas urnas, com pouco mais de 6 mil votos dos militantes, dois dos pesos pesados partido, Cristina Fontes Lima e Felisberto Vieira, iria experimentar o pão que os históricos amassaram. Desta vez, ao contrário do que acontecera no processo de escolha do candidato presidencial em 2011, a ideologia e os valores de Cabral não foram suficientes para escamotear a sede de protagonismo de uns e os interesses pessoais de outros. Como se não bastasse, o país viria a conviver durante largos meses com uma liderança a duas vozes. O então primeiro-ministro, José Maria Neves, seria obrigado a mexer no seu governo, primeiro para atender ao desejo expresso de alguns ministros de cessar a sua colaboração e depois para emprestar maior dignidade e peso politico à nova líder do partido.
Perdoe-me esta divagação. Estava a falar-te do congresso. Como prometera, Felisberto Vieira, inconformado com o desaire nas primárias, que, diga-se, atribuiu desde logo à alta taxa de abstenção e não ao demérito da sua candidatura, conseguiu uma presença esmagadora nos órgãos dirigentes do partido. E isso fez com que o PAICV resvalasse para uma situação periclitante de ter um presidente que não dominava o aparelho partidário. Por sua vez, sentindo-se de novo revigorado, Filu viria a desenterrar o seu sonho presidencial. O duelo com José Maria Neves foi inevitável, reabrindo as feridas de 2011. Perguntas-me que impacto todo este cenário teve nas eleições de 2016. Elementar, meu caro: O MPD reforçaria a sua hegemonia nas autarquias e ganhava as legislativas com maioria relativa. Abria-se assim um novo capítulo na história da nossa democracia recente.
Presumo que já te tenha falado do essencial daquilo que marcou, do ponto de vista mediático, o longínquo ano de 2015. Claro que houve outros temas que nesse ano mobilizaram a atenção dos cabo-verdianos. Olha, por exemplo, o país cumpriu todos os oito objectivos do milénio, mas era evidente para todos, até para as organizações e parceiros de desenvolvimento, que Cabo Verde andava a duas (para não dizer muitas) velocidades. A relativa prosperidade que o centro evidenciava não era sequer pressentida na periferia. As assimetrias regionais e as desigualdades sociais ganharam proporções alarmantes. Antes que me perguntes, a regionalização não avançou ainda porque simplesmente não existe vontade política para se mexer na organização administrativa do Estado. O centralismo compensa.
A nível das relações externas, finalmente os cabo-verdianos se aperceberam do logro que foi a parceria especial com a União Europeia, sobretudo no pilar “mobilidade”. Logo no início de 2015, o arquipélago começou a receber um sem número de cidadãos nacionais e estrangeiros (africanos) expulsos do El Dourado com o argumento de que se encontravam em situação irregular. Quanto à apregoada facilitação de vistos, o acordo nunca foi revisto e dele continuaram a beneficiar uns quantos privilegiados. A integração económica na CEDEAO continua a ser conversa para crioulo dormir, assim como a diplomacia económica, que não passa de um discurso chique.
Não sei se te interessa saber, mas digo-o na mesma. A flexibilização do mercado trabalho resumiu-se a alterações pontuais do código laboral, quiçá para agradar aos patrões e fazer boa figura no relatório do doing business. A produtividade e a competitividade da nossa economia continuaram débeis, levando o país a distanciar-se cada vez mais de outras realidades insulares mais próximas de nós. Já me esquecia, o subsídio de desemprego foi introduzido depois de duras negociações, acabando o estado por aumentar a sua comparticipação do fundo.
Vejo que esta carta já vai longa, mas não a posso acabar sem recordar que foi nesse ano, 2015, que, finalmente, o governo resolveu atender à velha reivindicação das gentes de S. Antão de abertura de uma delegação da RTC na ilha das montanhas. Se isso foi uma jogada eleitoral, não te posso assegurar, mas que a imponente ilha merecia sair do isolamento mediático, não resta qualquer fiapo de dúvida. Já que estamos a falar da minha antiga paixão, lembro-me agora que foi em 2015 que o Governo teimosamente concretizou o seu projecto de integrar a agência noticiosa na RTC. O resultado foi, como era previsível, a diluição da chamada Inforpress.
Era suposto estarmos hoje a viver num país desenvolvido, mas sobre isso tenho certeza que dispensas os meus comentários.