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Talento

As Pernas da Celine

Celine está sentada numa pedra dentro do mar da nova praia da Lajinha e tem os pés metidos na mansa água e deixa-os brincar ora esfregando-se um no outro freneticamente como se estivessem a matar umas cócegas desenfreadas, ora tocando-se mútua e lentamente numa carícia deleitosa. A água chega-lhe pelos tornozelos, mas ela puxou a saia até metade da coxa e, sentado a um metro de distância, eu estou pasmado a admirar a escultural beleza das suas pernas, como se tivessem sido torneadas por algum caprichoso escultor. É curioso, penso, conheço-a há tantos anos e nunca tinha reparado como tem as pernas tão bonitas. Mas será que ela tem consciência de como as suas pernas são belas e atraem? Se um homem não pensa com a cabeça e simplesmente se deixa levar pela atração do momento físico, lá está ele de mãos colocadas no alheio e logo acusado dessa nova maluqueira chamada de assédio sexual, se não for mesmo de violência baseada no género. Mas de todo o modo é injusto, essas pernas estarem ali expostas, convidativas, atraentes, chamativas como um íman, e uma pessoa ter que refrear-se, meter as mãos nos bolsos e procurar distrair-se a pensar em tempestades de areia, chuvas de sal, tsunamis loucos… Diga-me, dirijo-me a ela, posso dizer-lhe que tem as pernas muito bonitas? Ela vira a cara e olha para mim como que absorta: Sim, pode, responde por fim sem sorrir, estou habituada a ouvir isso, mesmo de mulheres. Há tempos, num congresso de literatura lusófona no Rio de Janeiro, uma boa meia dúzia de congressistas, todos homens, elegeram as minhas pernas como as mais bonitas de entre todas as participantes presentes, e olhe que já sou uma mulher de 60 anos.
O sol da tarde bate-lhe de frente no rosto, ela diz que quer bronzear um pouco e chegar a Lisboa com cores de verão naquele inverno que sacode a sua terra, mas sei que está ali à espera de surpreender o raio verde que lhe disse costuma chamejar sobre o Monte Cara justo na hora em que o sol camba no mar. O seu nariz vai ficar pelado, digo-lhe. Ela sorri: Será o preço do sol e da maresia, responde.
Crónica de Germano Almeida-ilustração
Estou a um metro da Celine contemplando as suas pernas. Podia ficar um pouco mais próximo, mas acho que deve ser esse o chamado espaço vital, cada um de nós com a metade de um metro para respirar a vastidão desse oceano que se estende até para além do horizonte visível. Acresce que a essa distância não corro o risco de inadvertidamente estender a mão e tocar-lhe as belas pernas, apenas aos meus olhos é permitido observá-las e admirar como são limpas, sem uma única variz ou cicatriz de uma ferida de infância… Sim, concluo, foi uma menininha de copo de leite, criada em redoma, nunca brincou saltando paredes ou açudes, nem nunca se perdeu entre as silvas, nunca teve a bênção de sofrer arranhões e chegar a casa assustada e em lágrimas… Fale qualquer coisa, diz Celine de olhos semicerrados em direção ao sol, não tem nada para dizer, você tão falador que é? Tenho sim, respondo, muitas coisas, umas verdadeiras outras falsas, desejos inconfessáveis, posso tocar as suas pernas? Ela não responde logo. Tocar como, pergunta por fim. Tocar tocando, encostando nelas a polpa dos meus dedos, a palma das minhas mãos, passear tudo suavemente como se você estivesse ali com uma dor e eu fosse um creme analgésico, um elixir reparador… Tocar acho melhor não, acaba por dizer após uma breve ponderação, pode ser perigoso, poderia entusiasmar-se e daí sair alguma asneira, portanto, comtemple apenas.
Contemplar apenas! Alimentar os meus olhos sequiosos como se as pernas da Celine fossem um colírio celeste. Todas as mulheres são assim: malvadas! Qual pode ser a distância entre contemplar e tocar? Para ela seria igual e para mim faria toda a diferença sentir a textura, a maciez de cetim que parece ter a sua pele. Imagino o que deve gastar em pomadas para conservar intacta essa beleza de que tanto se orgulha, sobretudo porque toda ela é ainda uma mulher apetecível. Bem, vantagens de nunca ter tido filhos, a barriga mantem-se lisa como uma tábua de passar a ferro.
Celine trocou a maternidade pelas viagens, sonhava ser marinheira de navios de longo curso, conhecer os portos do mundo e os diferentes povos que o habitam. Mas foi a bordo de um desses navios que as suas viagens encalharam para sempre, quando se deu conta que se tinha apaixonado pelo comandante com quem viveu um tórrido amor sobre os mares mais diversos do planeta. E que aconteceu em seguida, pergunto quando ela se cala. Nada, diz, acordei a meio da noite, ele não estava abraçado a mim como de hábito, procurei-o com a mão e achei-o frio. Sepultamo-lo no mar, uma cerimónia simples mas muito comovente, com o imediato, que tinha sido coroinha, a fazer-se de padre. Foi depois disso que enveredei pela literatura, em busca de um sentido ficcional para a vida.
Isso já foi há quase quarenta anos, mas mesmo assim ainda sinto a voz da Celine comovida. Nunca mais tive um homem assim, acaba por dizer. Assim como, pergunto curioso. Assim, repete nostálgica, assim como ele era. Ele gostava das suas pernas, pergunto para dizer alguma coisa. Amava-as, diz, adorava-as, passava horas e horas olhando as minhas pernas, falava com elas como se existissem independente de mim.
O sol desce no mar a centímetros do Monte Cara, um disco de uma luminosidade opaca para o qual podemos olhar sem dor. Preste bem atenção, digo-lhe urgente. Vou falando e vou me aproximando da Celine até ficar perto o suficiente para pousar a mão esquerda sobre as suas coxas onde as deixo ficar gozando a suavidade dessa pele que mais parece seda. O nosso pôr-do-sol difere do vosso pela sua rapidez, é apenas um instante fugaz, porém tão fascinante como o prazer da sua pele na minha mão, não retire, pois, os olhos do mar, que também não vou retirar a mão de si, até ao último instante podemos assistir ao milagre da faísca repentina do raio verde. Por ora vou vivendo a festa que faço no joelho da Celine.
Germano Almeida

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