O Cemitério de Marcela, sobranceiro ao mar, nas proximidades da Estância Balnear de Salinas, em São Jorge, é um dos dois cemitérios da Freguesia de São Lourenço, Zona Norte do Município de São Filipe (na Ilha do Fogo). Este cemitério está completamente abandonado e a exigir obras de intervenção e recuperação para desespero daqueles que reclamam que é necessário resgatar a imagem e dignidade deste património com quase 150 anos de existência, na perspectiva de que as pessoas, mesmo depois de mortas, devem continuar a merecer toda a dignidade e respeito. A última “inquilina” deste “Campo Santo” é “Idalina Coladera”, recentemente falecida.
Aúltima sepultada em Marcela é Catarina de Pina Brandão, mais conhecida por “Idalina Coladêra”, cujo acto fúnebre aconteceu no dia 21 de Outubro de 2021. Uma curisodidade: todas as pessoas que ali repousam são originárias de São Jorge e (quase todas!) parentes dos responsáveis pelo cemitério.
Para o enterro de “Idalina Coladera”, a Câmara de São Filipe, liderada por Nuias Silva, “abriu excepção, para satisfazer um pedido expresso, ainda em vida”, pela Idalina, considerada a “Rainha das Coladêras” e que dedicou, pelo menos, 80 anos da sua vida à causa da cultura da ilha do Fogo, na vertente das tradicionais Festas da Bandeira.
Não foi possível identificar os covatos mais antigos, mas podemos apontar, dois deles, sendo um, com a data de 1965, do marido de “Idalina Coladêra”; e um outro, de 1969. A maior parte das cruzes e dos restos de mausoléus não dispõem de inscrições, que, possivelmente, foram apagadas pelo factor tempo, mas, também, por desleixo ou incúria de quem devia preservar e cuidar deste “Campo Sagrado”. Degradação e “desrespeito”.
Neste momento, são mais do que visíveis os sinais da degradação e do estado de abandono deste Espaço Religioso e que requer alguma dignidade.
Havia, em tempos, ossadas e caixões, mas mereceram “a devida atenção e cudidado” do Serviço de Saneamento da Câmara de São Filipe, que já realizou duas campanhas de limpeza do Cemitério. Os mausoléus e “cruzes” estão a cair pela ribanceira abaixo, por falta de protecção do muro, aliada à erosão provocada pela maresia e do próprio factor tempo.
Por incrível que pareça, o espaço chegou a funcionar como depósito de lixo das obras de Salinas, situadas nas imediações de Marcela, que requer melhorias na via de acesso ao cemitério. Marcela tem um valor patrimonial e histórico que é fundamental preservar, por ser muito visitado pelos turistas que deslocam-se à Estância Balnear de Salinas, situada a escassos metros, a Norte do cemitério. Para muitos, sobretudo aqueles cujos familiares repousam nesse cemitério, é necessário resgatar a imagem e dignidade deste património com quase 150 anos de existência, na perspectiva de que as pessoas, mesmo depois de mortas, devem continuar a merecer toda a dignidade e respeito.
Milhões para requalificação
Ciente do estado avançado de degradação e do abandono a que está votado o Cemitério de Marcela, a Câmara Municipal de São Filipe, no quadro do Programa de Ordenamento o Território, mais concretamente, no sector do Ambiente, prevê investir mais de três mil contos na requalificação e ampliação desse espaço.
A intervenção tem como base a reorganização do cemitério, através da construção de arruamentos e alinhamentos dos covatos, a par do disciplinamento da construção dos mausoléus e da melhoria do conforto aos familiares dos falecidos em actos fúnebres. Como justificação para a intervenção, a Câmara Municipal considera que a “condição física do Cemitério de Marcela carece de uma intervenção urgente, com o objectivo de evitar que mais covatos desapareçam do local, por causa do desmoronamento do muro junto ao mar”.
Outra razão relaciona-se com o “esgotamento” de espaço no Cemitério de São Lourenço – paredes-meias com a Igreja Matriz -, para novos covatos. Marcela “reabilitado” servirá de alternativa ao Cemitério de São Lourenço, segundo aponta a Direcção Municipal do Ambiente da Câmara de São Filipe.
Construído na segunda metade do Século XIX
Das pesquisas feitas, quer através dos escassos documentos como das pessoas mais antigas, sobretudo da zona Norte, não foi possível determinar, com precisão, a data da sua construção, mas, da confrontação de alguns dados pode-se concluir que o mesmo terá sido construído na segunda metade do Século XIX, mais concretamente, a partir de 1850, provavelmente entre 1890/1900. Esta tese pode ser justificada por duas razões.
A primeira é que, até 1845, o enterro dos mortos ocorria no interior e/ou no átrio das igrejas, uma prática que foi proibida e abolida no ano de 1845, por decisão da Cúpula da Igreja Católica.
A segunda é que, algumas das sepulturas no Cemitério de Marcela datam de 1900/01. Conjugando estas duas razões, pode-se depreender que a sua construção terá ocorrido no intervalo de tempo que oscila entre 1850 a 1900, como a maioria dos cemitérios municipais da Ilha do Fogo.
O agente cultural Fausto do Rosária, sem precisar a data, considera que o cemitério de Marcela é mais recente que a maioria de cemitérios municipais. A sua construção terá ocorrido numa época em que não havia rede viária e nem meios de transportes, pelo que, os mortos eram transportados pelos homens, que, muitas vezes, percorriam grandes distâncias.
Razões da construção
O Cemitério de Marcela foi construído para servir as comunidades de Campanas de Baixo, Campanas de Cima, São Jorge, Galinheiro, e mesmo Ponta Verde, localidades distantes do Cemitério de São Lourenço, situado, praticamente na fronteira entre as freguesias de São Lourenço e de Nossa Senhora da Conceição (no Concelho de São Filipe), e, mais perto da Cidade do que estas comunidades rurais.
Dados recolhidos junto da Comunidade de São Jorge e de familiares de coveiros do referido cemitério, indicam que há sepulturas com marcas de cimento, que segundo informação transmitida, de geração para geração, são de pessoas que faleceram no princípio do Século XX (1901/04), durante uma pandemia que assolou a ilha e que, ainda hoje, é conhecida por “Doença da Bexiga”, pelo que, por esta razão, aquele “Campo Santo” não poderia ser aberto para outros usos.
As marcas, além de sinalizar e delimitar estes espaços, funcionam como um tipo de lacre, para evitar a sua abertura e eventual contágio.
Desactivação?
O Cemitério de Marcela está completamente abandonado e a exigir obras de intervenção e recuperação, por parte das autoridades municipais, nomeadamente, a Autarquia de São Filipe, na qualidade de proprietária de espaços do género, já que não se trata de um património privado.
Em teoria, foi desactivado no final de 1999, início de 2000, quando a Câmara Municipal era gerida por Eugénio Miranda da Veiga, segundo o antigo vereador de São Filipe e natural de São Jorge, Filipe Pereira Rodrigues, mais conhecido por “Bidonga”.
A desactivação foi, em teoria, porque não existe, ou pelo menos, não se conhece, nenhuma deliberação da Assembleia Municipal a proibir a utilização deste espaço para o enterro das pessoas. Nos últimos 20 anos, muitas pessoas foram sepultadas nesse cemitério, nomeadamente, nos anos de 2002, 2003, 2008, 2009, 2012 e 2015. Dados apontam que, a 14 de Outubro de 2012, um jovem (de 25 anos) da localidade de São Jorge foi sepultado em Marcela; a 21 de Setembro de 2014, um adolescente de 12 anos; enquanto em 2015, foram enterrados nesse cemitério duas pessoas, a saber: uma, no dia 11 de Junho, que era um indivíduo com 92 anos; e a outra, a 9 de Setembro, com 88 anos.
Seis cemitérios em toda a ilha do Fogo
Além de Marcela, existem, a nível do Fogo, mais cinco cemitérios. O Município de São Filipe, ocupando 391 quilómetros quadrados dos 476 quilómetros quadrados da Ilha e com maior número de habitantes, dispõe de quatro cemitérios, incluindo o de Marcela.
Na freguesia de São Lourenço existem dois cemitérios (Marcela, em São Jorge; e São Lourenço); Nossa Senhora da Conceição alberga outros dois: o Cemitério de Baixo e o de Achada Forca.
Os municípios dos Mosteiros e de Santa Catarina do Fogo dispõem de um cemitério cada: Laranjo e Monte Paragem, respectivamente. Em Chã das Caldeiras, dada à sua grande distância dos centros urbanos Cova Figueira e São Filipe, chegou-se a delimitar e a cercar um espaço, no Montinho de Moisés, para funcionar como cemitério, mas as características do solo mostraram que não era propício para esta prática. Ainda no município de Santa Catarina do Fogo, na zona litoral, nas proximidades da Cidade de Cova Figueira, mais concretamente, no sítio de Casinha (Bombardeiro), existia o primeiro cemitério daquele Município.
Ainda hoje é possível ver-se a ruína de uma cerca e de um mausoleum, testemunhando que, nesse espaço existia um “cemitério”, e que, provavelmente, a sua desactivação aconteceu com a construção do cemitério de Monte Paragem, mais perto da cidade de Cova Figueira e das demais localidades situadas numa altitude superior.
Domingos José, o coveiro de Marcela
Natural de São Jorge, onde nasceu há 55 anos, Domingos José é coveiro no Cemitério de Marcela há (quase) 32 anos. Começou no ano de 1990, “na época em que João do Rosário era delegado do Governo”, para a ilha do Fogo. Foi substituir o seu pai, que atingiu a idade de reforma.
Domingos José recorda que antes do seu pai, “há muitos anos”, o coveiro era o seu avô, José Lopes, o que pressupõe que, pelo menos, há três gerações da mesma família a desempenhar esta função, no Cemitério de Marcela.
Quando assumiu as funções, Domingos recebeu instruções e indicações do seu pai, referente ao(s) covato(s), que não podia(m) ser aberto(s) para novos enterros, porque, “são sepulturas da época da ‘Doença de Bexiga”.
Mais do que isso, não sabe explicar, com precisão nem propriedade, as verdadeiras razões” para se manterem “religiosamente fechadas”.
Domingos José reconhece que o cemitério está degradado, mas que dispõe de condições para continuar a funcionar, dispondo, inclusive, de espaços ao redor, para a sua ampliação, através da desmatação das acácias que circundam aquele “Campo Santo”, por “todos os lados, à excepção da do mar”.
Presentemente, muitos covatos não dispõem de cruzes ou os que as têm, elas estão danificadas. Também deixaram de estar alinhados. “Antigamente, o cemitério apresentava um certo ordenamento interno e era possível, através das cruzes, saber-se a data e o nome dos defuntos”, reconhece Domingos José, o actual coveiro de Marcela.
Único cemitério privado da Costa Ocidental Africana
Os cemitérios, como referido antes, foram construídos após a proibição e a abolição dos enterros no interior ou no pátio das igrejas (católicas).
O primeiro cemitério, provavelmente, foi construído na cidade de São Filipe depois de 1845, pela família de Francisco José Sacramento Monteiro, que mandou construir um pequeno cerco, sobranceiro ao mar, para enterrar os mortos da família.
Este “Campo Santo”, que constitui um Património Histórico-Cultural da ilha e um atractivo turístico, é conhecido como “Cemitério de Baixo” ou “Branco”, constituíndo o único cemitério privado de toda a Costa Ocidental Africana.
A campa, do lado de fora, é de Leonarda Barbosa Monteiro, que faleceu aos 68 anos, casada com Tadeu José do Sacramento Monteiro, que, segundo os levantamentos feitos, terá falecido a 7 de Março de 1893, originando várias teses e comentários.
A sepultura mais antiga desse cemitério é de 1853, o que leva a crer que a sua construção foi concluída em 1849.
No Livro de Óbitos lê-se que, a 14 de Setembro de 1850, o (então) Bispo de Cabo Verde declarou que fosse “sepultado no Cemitério Público desta Cidade”. Este cemitério figura no Roteiro Turístico dos Monumentos e Sítios Históricos da Cidade de São Filipe e de toda a ilha do Fogo, a serem visitados, quer pelos nacionais, como pelos turistas, quando passam pela “Ilha do Vulcão”.
Publicada na edição semanal do jornal A NAÇÃO, nº 739, de 28 de Outubro de 2021