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O Presidente da República e a Diáspora

Por: Milton J. Monteiro*

Passado as eleições presidenciais, uma promessa fica por cumprir e já vou logo cobrando. No Segundo Debate, o jornalista perguntou: “José Maria Neves acha que se deve rever este artigo que exclui cabo-verdianos com outra nacionalidade de participar nas eleições?” A resposta do Presidente eleito, não mais do candidato, foi: “Nós somos um Estado transnacional, somos transmigrantes e penso que devemos repensar esse artigo da Constituição, permitindo uma participação política mais forte da Diáspora em todo o processo político nacional”.

 O Artigo 110º reza o seguinte: “Só pode ser eleito Presidente da República o cidadão eleitor cabo-verdiano de origem, que não possua outra nacionalidade, maior de trinta e cinco anos à data da candidatura e que, nos três anos imediatamente anteriores àquela data tenha tido residência permanente no território nacional”.

 Esse artigo ganhou destaque quando alguns emigrantes interessaram em candidatar-se, como foi o caso do Marcos Rodrigues, que manifestou o seu descontentamento com o impedimento. Já com as entrevistas e debates presidenciais, a questão veio novamente à baila e os candidatos foram quase todos favoráveis à revisão do Artigo.

 O Presidente Jorge Carlos Fonseca disse ser contra a candidatura de cabo-verdiano com dupla nacionalidade, apesar de ser favorável ao debate. Carlos Veiga posicionou-se em parte, entende que a exigência de três anos de residência não faz mais sentido e faculta debate parlamentar quanto à questão da nacionalidade. Todos os demais candidatos, inclusive o Presidente eleito, querem a mudança do Artigo 110º, com exceção do Casimiro que faculta o debate.

 Percebe-se que todos são favoráveis a priori do debate. Sendo assim, a primeira pergunta é: por que não se debateu e quiçá se debaterá se a gente não pegar no pé? Simples: em prol da maior democracia na África, a última coisa que se faz naquele parlamento é debater; antes as rixas históricas do que debates e respeito aos contraditórios. Se essa palavra existisse por lá, haveria audiências públicas; a TACV não seria esse fiasco que é, a mando e desmando de quem governa, sem transparência e informações básicas à Nação e ao próprio Parlamento. Aliás, a Diáspora não estaria reclusa do seu próprio país ou abandonada no meio das passagens absurdas da TAP.

 É justamente por termos esse gargalo (falta de diálogo) que a hegemonia bipartidária precisa cair e já. Enquanto PAICV e MPD revezar o poder e navegar na maioria absoluta não haverá espaço para debates e negociações, oposição será figurativa, assim como a Presidência, e só veremos imposição a bel prazer de quem está no poder, o que, felizmente, não acontece mais na Câmara de São Vicente.

 Vamos ver que debate teremos. Se isso é relevante, não pela revisão em si, mas por consideração e respeito à Diáspora, o atual presidente tem que tirar da caverna, por exemplo, o Artigo 135°: “1. Compete ao Presidente da República: […] o) Requerer ao Presidente da Assembleia Nacional, ouvido o Conselho da República, a convocação extraordinária daquele órgão, para apreciar assuntos específicos”. Essa alínea carece de uso.

 É preciso criar no parlamento uma cultura de debate e nisso o Presidente da República tem um papel pedagógico e instigante. Ele deve promover os “assuntos específicos”, de interesse da nação, sendo mais uma voz ativa, não dos partidos ou daquele que o elege. É esse outro motivo para que o Presidente eleito esteja longe da influência do arco do poder; seja de fato árbitro, imparcial, ator fora do quintal dos partidos políticos ou de quem governa.

 Se o “Presidente da República é o garante da unidade da Nação”, como preconiza o Artigo 125º da CRCV, então, ele deve zelar para que essa unidade seja integral, não se pode fazer nenhuma espécie de distinção entre o cabo-verdiano residente nas Ilhas e na Diáspora. O candidato José Maria Neves falou bonito e agora queremos ver o Presidente agir: “relativamente a Diáspora, o Presidente da República deve ser o símbolo da união”.

 Como disse meu amigo e professor de Direito, Oscar Crisolito Abreu, “o Artigo 110º parece ser um artigo de desconfiança”. Para o candidato Gilson “essa é a vergonha do Artigo 110, não tem nada a ver com aquilo que nós somos”.

 Uma das diferenças básicas entre as normas de direito privado e público, é que no direito privado, o que não é proibido pela lei é permitido, já no direito público, somente é permitido aquilo que está na lei. Por que o Estado de Cabo Verde, sendo o mais diaspórico da CPLP, foi o único que decidiu inventar essa questão?

 Na verdade, o atual Artigo 110° veio da revisão de 1999 (Artigo 109°), lembrando que houve também uma revisão extraordinária, em 1995. Na Constituição de 1992, Artigo 110º era o Artigo 118° e não impunha a questão da dupla nacionalidade. Pergunta-se: por que tal inserção, posterior, com que intenção?

  O zelo de um suposto conflito de interesse com a dupla nacionalidade é factível? É mais real do que o direito político e participação da Diáspora na construção do país? Não é nesse mesmo artigo que se exige do candidato “que, nos três anos imediatamente anteriores àquela data tenha tido residência permanente no território nacional”? Cumprindo isso, que espécie de candidato emigrante estamos imaginando? Qual desconhecido, despreparado, incompetente, traidor, mal-intencionado seria eleito?

 O que pode ser mais real do que o apego que a alma emigrada tem para com aqueles dez grãozinhos de terra? É de duvidar que haja povo mais umbilical ao seu país do que o cabo-verdiano! Tenho para mim, não que sou totalmente a favor (quero também debates, risos), que a queda desse artigo está mais para o imaginário valorativo que temos da Diáspora do que qualquer outra razão. Mesmo que haja plausibilidade no Artigo 110º, é também forte o valor simbólico e material da Diáspora.

 Será que esse Artigo fere a nossa alma, sendo mais uma demonstração da nossa crise de identidade? Nem deveria interessar muito o que é práxis pelo mundo afora, Cabo Verde é peculiar, não é assim que alegamos quando queremos fugir da África? Então, por que nessa matéria não considerarmos a peculiaridade diaspórica da nossa gente?

 Pelo princípio desse fato indelével que é a emigração, dever-se-ia entender que a condição para elegibilidade não se trata de uma simples escolha que deve ser jogada a priori ao emigrante, até porque essa decisão é imaginativa e não é pragmática (questão de sobrevivência, integração etc.). Se Cabo Verde não abre mão “nem a pau” do fruto do esforço fatigante, das remessas dos emigrantes, que pensem duas vezes antes de dizer para a Diáspora optar entre direitos políticos e a dupla nacionalidade.

 Perguntemos: os círculos eleitorais no exterior estão bem distribuídos? E os deputados? Para a eleição do Presidente, está redondinho o Artigo 113º que diz “2. Se a soma dos votos dos eleitores recenseados no estrangeiro ultrapassar um quinto dos votos apurados no território nacional, é convertida em número igual a esse limite e o conjunto de votos obtidos por cada candidato igualmente convertido na respectiva proporção”? Há uma série de direitos políticos tangíveis à Diáspora que precisam ser debatidos.

 Diáspora não é “a décima primeira Ilha”, por outro ângulo, é a primeira. Como eu disse noutra ocasião: “Cabo Verde nasce com a emigração, tanto pela colonização quanto pela Independência. Precisamos entender que Diáspora não é apenas remessas dos emigrantes. É sim, um celeiro de ‘cérebros’, mas que não está em fuga” (entrevista ao A NAÇÃO, nº 666, de 04 de junho de 2020).

 Peguemos o exemplo de Cabral, o maior filho da Diáspora: o que seria hoje de Cabo Verde se ele não tivesse emigrado e ido estudar fora? Como perguntou John Fobajong, “A luta pela libertação e independência de Cabo Verde e da Guiné teria sido bem-sucedida sem o binacionalismo de Cabral e a visão pan-africanista? Isso seria pedir demais. Provavelmente, muitos intelectuais argumentarão que, se cada território tivesse lutado independentemente para se libertar, teria sido uma guerra perdida” (in Carlos Lopes (org.), Desafios contemporâneos da África: o legado de Amílcar Cabral, pág. 175). Lembremos, então, quão relevante foi a contribuição “de fora” para a Independência nacional, quão importante é a Diáspora para o desenvolvimento do país. Cabo Verde existe porque existe também a Diáspora, e mais do que nunca, essa pandemia tem provado isso.

 “Se ka bai ka ta birado”. Nesses versos de Eugénio Tavares encontramos a ideia de que a volta é também um projeto de ida do cabo-verdiano. Ou seja, ele emigra para voltar, voltar e dar o seu contributo a sua pátria e uma vida melhor aos seus queridos. O “drama de terra longe” é uma antítese para o cabo-verdiano, tanto na ida quanto na volta. Na ida, ele quer ir porque precisa ir, mas quer ficar, porque Cabo Verde é seu lugar. Na volta, ele quer voltar, mas precisa ficar. E engana-se quem pense que essa volta precisa ser necessariamente física (quando não voltamos, os nossos recursos voltam; quando não voltamos, os nossos talentos podem voltar, se assim desejarem).

Parece que para efeitos de unidade constitucional, o Artigo 110º precisa “acertar contas” com o Artigo 5º, que trata da cidadania. Nesse primeiro momento, a intenção do Constituinte é coerente com a nossa identidade: “2. O Estado poderá concluir tratados de dupla nacionalidade. 3. Os Cabo-verdianos poderão adquirir a nacionalidade de outro país sem perder a sua nacionalidade de origem”.

 É cabo-verdiano na Diáspora cidadão de segunda categoria? Jamais! Tenho certeza de que todos acham que não, mas meras palavras não têm valor, é preciso direito de jure e de fato. Mais, a eficácia das normas constitucionais, transcendem aqui sua formalidade e materialidade: nós da Diáspora queremos ação e não papo. Segundo o Artigo 7º da CRCV, é tarefa fundamental do Estado “Apoiar a comunidade cabo-verdiana espalhada pelo mundo e promover no seu seio a preservação e o desenvolvimento da cultura cabo-verdiana”.

 Damos isenção de visto, mas sem reciprocidade. Criou-se às pressas a lei de investimento do emigrante, sem ouvir a Diáspora e sem trazer grandes incentivos. Negligência e desrespeito começam na porta de regresso: TACV e Alfândega.  O regime de pequenas encomendas está aí com as suas reclamações e dores de cabeça, enquanto as remessas e encomendas só crescem.

 Ainda sonhando nas promessas do candidato eleito, o Presidente da República “deve trabalhar no sentido de mobilizar todas as capacidades e todas as competências da Diáspora para, por exemplo, desenvolvimento da saúde, do ensino superior, ciência e inovação, fomento e desenvolvimento empresarial e aproveitar todas as capacidades e todos os talentos em outras áreas importantes e fundamentais para o desenvolvimento global de Cabo Verde”. Pois bem, sendo essa a função do Governo, isso não aconteceu naqueles quinze anos e agora tem-se uma nova chance de considerar a Diáspora na famosa “magistratura de influência”. Por ora sabemos que nenhum dos dois partidos, apesar das iniciativas, pode se gabar de ter pensado uma política estratégica de Estado para a Diáspora, da qual a própria Diáspora tenha pensado e participado.

 

*Cabo-verdiano na Diáspora e professor na Universidade Federal do Tocantins, Brasil (cvmilton@hotmail.com).

Publicada na edição semanal do jornal A NAÇÃO, nº 739, de 28 de Outubro de 2021

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